sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Feito um homem que não sabe mais o que lhe vai por dentro



Lucas não fora sempre miserável. Passou por um gravíssimo momento: indo para seu escritório de advogado, no centro de Harmada, numa certa manhã de fevereiro, debaixo de um calor úmido, pegajoso, quase insuportável - ele dizia, rigorosamente insuportável para as condições biológicas de praxe de um humano -, nesta manhã, ao parar o carro diante de um sinal vermelho de uma esquina qualquer, apareceu-lhe um garoto a esfregar o vidro dianteiro, o garoto cuspia no vidro e automaticamente esfregava ali um paninho de feltro para que pudesse em troca ganhar uns trocados, e o sinal passou para o verde e o garoto não saía dali, a esfregar aquele paninho de feltro no vidro dianteiro do carro, Lucas mostrava-lhe umas moedas mas o garoto não via nada, queria apenas esfregar aquele paninho de feltro no vidro dianteiro do carro, Lucas nunca soube explicar para si mesmo, ele me afirma trêmulo debaixo de uma frondosa árvore no pátio do asilo que nunca soube explicar para seus próprios miolos, mas vieram as buzinas ensurdecedoras por trás dele e o suor o encharcava inteiro, e ele puxou o nó da gravata, abriu os botões superiores da camisa e arrancou o carro feito um homem que não sabe mais o que lhe vai por dentro, foi assim que ele disse, feito um homem que não sabe mais o que lhe vai por dentro ele arrancou o carro, passou por cima do garoto que morreu na hora esmagado pelos pneus traseiros, e quando Lucas disse esmagado pelos pneus traseiros, ele soltou uma ribombante gargalhada, como se essa gargalhada fizesse parte da história, como se ela entrasse sempre justamente aí, neste pedaço do garoto esmagado pelos pneus traseiros, porque assim como a gargalhada explodiu também desvaneceu-se, de forma abrupta, aloprada, e Lucas me contava agora novamente com a expressão grave, muito grave, como um promontório a contemplar o remoto mar que ninguém mais alcança, desconhecendo o palpitar de qualquer outra existência além daquilo que ele tinha a contar.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Vocês não estão entendendo nada



Absolutamente nada.
10 minutos, 5 de música, 5 de vaia e Caetano em fúria, track 13: http://app.radio.musica.uol.com.br/radiouol/cdcapa.php?artista=Joyce&album=A-Era-dos-Festivais---Cd2&codcd=007796-3
Se vocês forem em política como são em estética, estamos feitos.
Foi Gilberto Gil! E fui EU!
O júri é muito simpático, mas é incompetente.
Assim, sem abraço.
Porque metade de mim é amor e a outra é vocês não estão entendendo nada. Canalhas.

Depois da discografia completa, senti um vazio em meu coração.
Apesar do receio de estragar esse nosso momento, tomei coragem de baixar Cinema Falado.
E o filme é exatamente aquilo que eu achava que seria: Godard fase escrota.
No fundo, eu sabia que não estragaria, afinal, quem poderá fazer aquele amor morrer se o amor é como um grão, morre, nasce trigo, vive, morre pão.
Esse trecho com Dedé irmã de Drão dá uma idéia: http://www.youtube.com/watch?v=5GZSXzsHh20.
Sempre que vejo esse tipo de filme fico um pouco irritada, Notre Musique (pra ficar na mesma sinestesia), p.ex., o Godard dando aula de cinema, literalmente (http://www.orkut.com.br/Community.aspx?cmm=2823357) e eu me perguntando porque ele não escrevia um livro em vez de encher o meu saco. Não que esse tipo de filme não diga nada de interessante, pelo contrário, mas eu acho tudo aquilo tão fora de propósito. Eles geralmente fazem digressões interessantíssimas, dariam ótimos ensaios, com ricas notas de rodapé.
Enfim, filmes como Cinema Falado, afora uma ou outra sacada visual perdida no meio da tese, não me interessam como cinema.
Podem até me interessar como cinéfila (não como "objeto de estudo", mas a curiosidade pelo pensamento sobre cinema) ou, então, como leitora mesmo, uma frase, um poema.
Frases-diálogos-monólogos caetânicos.
"Paris, Texas parece fotografias de negros africanos tiradas por Leni Riefenstahl".
O trecho de Grande Sertão é especialmente horrível e sem fim.
Um cara feio de óculos fundo de garrafa sentado no chão, devia ser ator de teatro (e sempre que eu disser que parece ator de teatro é pejorativo, ok?), declamando, interpretando.
A capa de Omaggio a Federico e Giulietta é uma cena do filme, reminiscências da sua cinefilia adolescente assobiando Nino Rota.
- Quando eu ando aqui na rua de noite, quando venho aqui a Santo Amaro, parece que é cinema calado, eu fazia música assim, inventando música, inventando música de filme italiano e olhando a rua, parece filme italiano
- Tinha 3 cinemas, hoje não existe mais
- É, tinha 3, agora não tem cinema nenhum


E por falar nisso, VIVA CACILDA BECKER!

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Se ao menos pudesse sentar-me nas escadas do amor que me humilhava.

O que é o respeito? A sala de visitas do medo. O quarto dos fundos do amor. O tecido que resta, depois do corpo - a morte, tão cosida ao pavor da vida. Não me respeites - não me esqueças. Deixaste de me criticar, perdeste o prazer arrepiante de ser injusto, que só se tem para com aqueles que se amam.

terça-feira, 5 de agosto de 2008