sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Feito um homem que não sabe mais o que lhe vai por dentro



Lucas não fora sempre miserável. Passou por um gravíssimo momento: indo para seu escritório de advogado, no centro de Harmada, numa certa manhã de fevereiro, debaixo de um calor úmido, pegajoso, quase insuportável - ele dizia, rigorosamente insuportável para as condições biológicas de praxe de um humano -, nesta manhã, ao parar o carro diante de um sinal vermelho de uma esquina qualquer, apareceu-lhe um garoto a esfregar o vidro dianteiro, o garoto cuspia no vidro e automaticamente esfregava ali um paninho de feltro para que pudesse em troca ganhar uns trocados, e o sinal passou para o verde e o garoto não saía dali, a esfregar aquele paninho de feltro no vidro dianteiro do carro, Lucas mostrava-lhe umas moedas mas o garoto não via nada, queria apenas esfregar aquele paninho de feltro no vidro dianteiro do carro, Lucas nunca soube explicar para si mesmo, ele me afirma trêmulo debaixo de uma frondosa árvore no pátio do asilo que nunca soube explicar para seus próprios miolos, mas vieram as buzinas ensurdecedoras por trás dele e o suor o encharcava inteiro, e ele puxou o nó da gravata, abriu os botões superiores da camisa e arrancou o carro feito um homem que não sabe mais o que lhe vai por dentro, foi assim que ele disse, feito um homem que não sabe mais o que lhe vai por dentro ele arrancou o carro, passou por cima do garoto que morreu na hora esmagado pelos pneus traseiros, e quando Lucas disse esmagado pelos pneus traseiros, ele soltou uma ribombante gargalhada, como se essa gargalhada fizesse parte da história, como se ela entrasse sempre justamente aí, neste pedaço do garoto esmagado pelos pneus traseiros, porque assim como a gargalhada explodiu também desvaneceu-se, de forma abrupta, aloprada, e Lucas me contava agora novamente com a expressão grave, muito grave, como um promontório a contemplar o remoto mar que ninguém mais alcança, desconhecendo o palpitar de qualquer outra existência além daquilo que ele tinha a contar.

Um comentário:

::Soda Cáustica:: disse...

vi "Joao Gilberto" e lembrei da minha saga para comprar o tal ingresso... faço parte de uma boa parcela do adoradores que NÃO conseguirão vê-lo por causa das prgas dos cambistas.